Arte (e acontecimento) nos anos 60 e 70: pública e comum
Sheila Cabo Geraldo
As ações aqui abordadas são as que envolveram lugares e habitantes das cidades do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Pamplona, Barcelona e Rosário nos eventos e projetos de Apocalipopótese, Do corpo à terra, Encontros de Pamplona, Grup de Treball e Tucumán Arde.
Apocalipopótese, como escreveu Wally Salomão, quando da morte de Torquato Neto,[1]
foi o nome inventado pelo designer-esotérico Rogério Duarte para o espírito daquela época. A sôfrega ânsia por um juízo final que suspendesse o curso das coisas banais dos dias e o anúncio contínuo de que todo dia é dia D, um carpe diem negativo...
Suspender o curso das coisas banais se refere aqui também, e sobretudo, a suspender os modos e usos dos espaços de arte, como espaços “dentro-determinados”, segundo Hélio Oiticica no texto de 1969 em que avalia sua experiência Whitechapel.[2]
Apocalipopótese, que acontecera em julho de 1968, ainda nas palavras de Hélio,[3] teve origem nos ovos, de Lygia Pape, assim como em sua bólide-cama. Hélio diz:
Rogério Duarte formulou tudo, numa conversa comigo, em minha casa, em maio de 68: a ideia de probjeto, que engloba tudo (...) os ovos de Lygia Pape seriam o exemplo clássico de algo puramente experimental, por isso diretamente eficaz: estar, furar, sair o contínuo “reviver” e “refazer” (...) Tudo explodido naquela tarde – John Cage estava lá, trazido por Esther Stockler (...) as pessoas participavam diretamente, obliquamente, sei lá mais como – mas o importante é o sei lá mais como, o indefinido que se exprime pela inteligência clara de Lygia Pape ou pela turbulência de Antônio Manuel, ou pela perplexo-participação das pessoas ou...[4]
Embora efetivamente tivesse acontecido no Pavilhão Japonês, no meio dos jardins de Burle Marx, em torno do Museu de Arte Moderna,[5] mais do que pensar critica e diretamente o museu, como fará mais tarde toda uma leva de artistas que denominarão esse processo crítica institucional,[6] o que ali ocorreu como parte da ânsia de suspender o curso das coisas banais foi também a suspensão do curso do banal da arte em si, o que, de acordo com Hélio, determinou a experiência realizada um ano mais tarde na galeria Whitechapel, um acontecimento importante não só na trajetória de Hélio como artista, mas também na da própria instituição londrina, segundo Guy Brett,[7] que nos anos 80 fez uma avaliação da experiência.
No texto A obra, seu caráter objetal, o comportamento, publicado no número 18 da revista GAM, de 1969, Hélio escreve: “A insuficiência das estruturas de museus e galerias de arte, por mais avançados que sejam, é hoje em dia flagrante e traem, em muitos casos, o sentido profundo, a intenção renovadora do artista”.[8] Continuando, depois de fazer um paralelo entre suas proposições em Londres e as propostas de Mondrian e Schwitters no sentido de aproximar a arte da vida, diz ainda:
Há, então (...) a passagem desta posição de querer criar em um mundo estético, mundo-arte, superposição de uma estrutura sobre o cotidiano para descobrir os elementos do cotidiano, do comportamento humano, e transformá-lo por suas próprias leis, por proposições abertas, não condicionadas, único meio possível como ponto de partida para isso.[9]
E prossegue: “E os museus? E a arte das galerias? Prefiro a das galeras, que eram lindas e percorriam os sete mares, de sul a norte...”[10]
Especificamente escrevendo sobre o evento Apocalipopótese, e fazendo uma avaliação da transformação provocada não só no circuito de arte do Brasil, como no próprio sentido de trabalho, enquanto obra, que deixaria de ser fruto de uma vontade individual a serviço das instituições, escreve em outubro de 1969, quando estava na Universidade de Sussex, em Brighton:
A manifestação Apocalipopótese marca a etapa definitiva, nova, nas sequências vanguardescas brasileiras; para mim foi um marco pois nela novas possibilidades de manifestações coletivas, da relação “obra individual-improvisação coletiva”, surgem e propõem coisas radicais: a definitiva inconsistência da “obra de arte”, do objeto, etc.; superação do conteúdo de exposições, “happenings”, etc. A necessidade de uma reforma geral dos grupos culturais que “dirigem” as promoções de “arte” ou de qualquer coisa ligada às experiências criativas.[11]
Embora Apocalipopótese, cujas “...estruturas tornavam-se gerais, dadas, abertas ao comportamento coletivo-casual-momentâneo”, tenha gerado, um ano mais tarde, a experiência de Londres, nesta última, como o artista descreve, havia ainda “uma autoabsorção no útero do espaço construído” (institucional), que o leva ao Suprassensorial. Mais do que expor em uma galeria londrina, Hélio estava abrindo ali, a partir da proposição do Éden, esse espaço de abrigo e absorção ─ um espaço que já estava nas camas-bólides e que mais tarde chamaria de Crelazer[12] ─ em que a participação é do nível em que o “participador irá elaborar dentro de si mesmo suas próprias sensações, as quais foram despertadas por sensações”.[13]
Paula Braga, analisando o texto The Senses Pointing Towards a New Transformation, que Oiticica enviou depois da experiência na galeria de Londres, no final de 1969, para a revista Studio International, identifica com clareza a reflexão de Hélio sobre a dificuldade de continuar suas experiências Crelazer em espaços de museus e galerias. Referindo-se à Whitechapel escreve:
Para mim, aquilo foi mais um experimento do que uma exposição (eu propus coisas ao invés de expô-las). Mas toda a evolução que apresentei lá leva a essa condição: a impossibilidade de experimentos em galerias ou museus – os ao ar-livre ainda poderiam valer, dependendo de suas relações e razões.[14]
Assim é que se poderia entender que Apocalipopótese tem, efetivamente, esse caráter de reviravolta não só na produção de HO, que a partir daí aponta para a condição aberta da experiência Suprassensorial, como escreveu, mas também para o que Acconci percebera como ativação de um espaço público nos Ninhos, que Oiticica apresentara na exposição Information, no Moma de Nova York, em 1970. Ainda segundo Acconci,[15] os Ninhos seriam uma maneira antecipadora na trajetória histórica das condições de arte na segunda metade do século XX, uma composição de lugares para estar, uma junção em que os espaços de experiência individual ganham conotação pública já que formam um composto, formam as “células comunitárias”, diferenciando-se de um espaço para experiências performáticas de grupo.
A proposição, organização e participação no evento Apocalipopótese, então, não seria senão uma confirmação da vontade ou da aspiração a um sentido público, ou melhor, a configuração de um novo sentido para a arte que inclui sua condição pública. Seria, como no título do livro póstumo[16] elaborado por Luciano de Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão, aspiração a certo espaço na e da arte, que se dá enquanto “grande labirinto”, o que nos faz entender Apocalipopótese não como elemento de uma cartografia dos espaços urbanos, mas como uma proposta de grande diagrama labiríntico, coletivo e público para a arte.
Nos anos seguintes, vários acontecimentos têm a condição pública enquanto deflagradora de ações, como o trabalho DEFL....SITUAÇÃO...+S+....RUAS,[17] de Artur Barrio, assim como Inserções em circuitos ideológicos. Projeto cédula (Quem Matou Herzog?),[18] de Cildo Meireles, e Clandestinas, de Antonio Manuel. Essas proposições são, certamente, dobras desse diagrama labiríntico em que o sentido da arte se dá quando a experiência individual ganha conotação pública.[19]
Assim também serão muitos dos trabalhos apresentados no evento Do corpo à terra, em Belo Horizonte, organizado por Frederico Morais, em 1970.[20] Sua concepção estava associada ao Palácio das Artes, que fica dentro do Parque Municipal, no coração da cidade. Estrategicamente foram programadas duas exposições:[21] Objeto e Participação, dentro do espaço expositivo, e outra externa, concebida de performances e intervenções. O evento coincidia com a data de comemoração de Tiradentes, ídolo mineiro independentista, e durou três dias. Frederico diz que os artistas, em plena ditadura militar, tiveram garantida toda liberdade de criação, o que permitiu a intervenção Tiradentes: Totem-monumento ao preso político, em que Cildo Meireles queimou galinhas vivas amarradas a um poste em pleno Parque. Participaram, ainda, Thereza Simões, que preparara carimbos com textos de Luther King e outros de caráter político, como FRAGILE, que, como relatou,[22] demonstrava a fragilidade dos sistemas sociais da época; Umberto Costa Barros, que montou estruturas com o material encontrado no Palácio das Artes, ainda em construção; Eduardo Ângelo, que rasgou jornais e jogou os pedaços ao vento; Luciano Gusmão, que fez um mapeamento do Parque, dividindo-o em áreas livres e de repressão. Duas outras intervenções também polêmicas foram as que fizeram Luiz Alphonsus, que queimou uma faixa de pano de 30 metros e chamou de Napalm, e Barrio, que, em Situação T/T. I, durante a noite, depositou inúmeras trouxas de carne e ossos de boi no riacho que corta o Parque, criando, pela manhã, um clima de excitação e terror que dali se espalhou pela cidade através da mídia.
Do corpo à terra acaba sendo, assim, uma forma de revelar em arte os sintomas da cidade que o acolhe, pois aciona e coloca em evidência, pelas repercussões, a própria trama de aprisionamentos que os cidadãos começam a vivenciar depois de 1968. Algumas experiências, como a de Barrio, que mobilizou os serviços da polícia e do corpo de bombeiros, despertaram na população recordações de um grupo de extermínio, que agia dentro da própria polícia, mas também o trauma dos desaparecimentos de ativistas políticos.
No início dos anos 70, que no Brasil são os mais truculentos, também chamados de “anos da última vanguarda”, os artistas que aqui permaneceram, que não se exilaram, desenvolveram diversas intervenções nos perímetros urbanos, requerendo-os enquanto lugares públicos de expressão livre, coincidindo com um desejo internacional de problematização conceitual dos espaços institucionais (Buren, Broodthaers, Fraser, etc.). Na Espanha, que vivia desde o final da Guerra Civil sob a ditadura sanguinolenta de Franco, responsável, entre muitos outros, pelo assassinato do poeta Garcia Lorca, identificam-se nesse período dois importantes acontecimentos. O de maior ressonância foi, sem dúvida, o Encontros de Artes, de 1972, conhecido como Encontros de Pamplona, e que representou, no contexto repressivo franquista espanhol marca explosiva de liberação, “uma expressão da cultura não oficial, um ataque contra a hierarquia de valores, uma reivindicação do corpo”,[23] de acordo com José Cuyás e Carmen Pardo.
Na cena artística espanhola, o circuito institucional teve dificuldades para absorver o que se apresentou em Pamplona. Organizado pelos artistas Luis de Pablo e José Luis Alexanco, começa com a instalação das 11 cúpulas infladas unidas por túneis cilíndricos, que tinham 12m de altura e 25m de diâmetro cada. O projeto de José Miguel Prada Poole foi montado em uma praça da cidade e teve como função abrigar as diversas instalações, além de projeção de vídeos e alguns colóquios, que constavam da programação.[24] Dos Encontros faziam parte, ainda, as mostras: Arte Basca Atual; Geração Automática de Formas Plásticas e Sonoras; Alguns Aportes da Crítica à Arte nos Últimos Anos, além de diversas apresentações de música e cinema. John Cage, que também estivera em Apocalipopótese, foi o convidado da abertura, e durante os dias dos Encontros aconteceram várias intervenções no espaço da cidade, fora das cúpulas, tanto performáticas quanto de instalações site-specific. Como ações performáticas, as que mais de perto pensaram o sentido da arte no espaço público foram Denotación de una ciudad, do artista argentino Carlos Ginzburg, integrante do Grupo de los Trece (1971), patrocinado pelo Cayc, de Buenos Aires, e Corredores, de Robert Llimós, que efetivamente derivam no perímetro urbano acionando o que Oiticica chamou de “comportamento coletivo-casual-momentâneo”.[25] Diversa, mas equivalente, havia ainda, a experiência ativada pelos trabalhos do próprio Hélio, que nesse momento morava em Nova York e enviou alguns Parangolés pelo artista argentino Leandro Katz − que também morava em NY − e que foram vestidos pelo público.[26]
No que diz respeito às instalações em espaços públicos, destacaram-se as Estruturas Tubulares, de Isidoro Valcárcel Medina, assim como as de Luis Lugán, com telefones espalhados pela cidade, que o artista intitulou Comunicação Humana.[27]
No início dos anos 70 também aconteceu na Catalunha a Mostra de Arte de Grenollers[28] (1971-1972), que simultaneamente ao lançamento do livro Da arte objetual à arte do conceito, de Simón Marchán Fiz, reforça não só a criação conceitual-experimental, como o debate sobre a relação entre arte e sociedade. Ainda na Catalunha surge, entre o final de 1972 e o princípio de 1973, o Grup de Treball (Grupo de Trabalho), que era formado por, entre outros, Francesc Abad, Jordi Benito, Antonio Muntadas, Antoni Mercader e Àngels Ribé. O coletivo formou-se como grupo de criação, opinião e ação, tendo-se rebelado contra o sistema artístico estabelecido e reivindicado uma função social para a arte. Segundo Antoni Mercader,[29] alguns dos ideais do grupo poderiam ser traduzidos em: “a arte para a rua”, a “arte para todos”. Nesse caso, a “arte para a rua” tinha como tática o impacto da ação midiática, que coincidia com as discussões conceituais, o que fez com que toda e qualquer aproximação de certo realismo social, referência histórica da relação entre arte e sociedade, fosse descartada. Em suas ações havia uma dosagem inteligente de autorreflexão e comunicação, o que tanto os distanciava da arte panfletária quanto os aproximava de uma nova equação, que coordenava a arte conceitual, as mídias e a transformação social.
Suas primeiras manifestações foram: a veiculação do Cartaz para a solidariedade com o Movimento de Trabalhadores, de abril 1973, e Anunciamos, de junho e julho de 1973. Nesse período, o Grupo concentra-se no uso do discurso e da informação. Em uma segunda etapa, mais centrada no debate cultural, coloca em prática o Serviço de Resposta à Imprensa, cuja tática era enviar artigos a jornais e revistas avaliando mostras de arte, assim como as políticas de ocupação dos espaços públicos. Paralelamente, o Grupo mantinha cursos para a discussão da relação entre a arte e o contexto social, prática que acabou gerando a redação de comunicados em conjunto com outros setores culturais e que foram apresentados em eventos da Catalunha (Novas tendências na arte, de maio de 1974), mas também de Madri (Novos Comportamentos artísticos, de março de 1974). Em 1975, apresenta na Bienal de Paris o trabalho Campo de Atração: Documento, divulgando a imprensa clandestina da Catalunha, considerada ilegal.
As ações do Grup de Treball, que encerra suas atividades em 1975, tiveram grande impacto nos debates sobre arte na cidade de Barcelona, espalhando-se para vários centros produtores de arte na Espanha e na Europa, mas foram menos violentas, se comparadas ao que fez o Grupo de Artistas de Vanguarda, de Rosário, no final dos anos 60. Ligados até então ao Instituto Di Tella, postulam uma “nova estética”, que implicava a dissolução das fronteiras entre ação artística e ação política. Para esse grupo, a violência, que nesse momento já era aterradora na Argentina, se transformava em material de arte. Apropriando-se de procedimentos próprios das organizações de esquerda, que estavam, então, radicalizadas em ações extremadas, o grupo promove verdadeiras ações táticas de guerrilha, boicotando inaugurações de exposições com apedrejamento; lançando bombas de impacto sonoro e panfletos na entrega de um prêmio do Museu Nacional Belas Artes; tingindo de vermelho as águas das fontes mais importantes de Buenos Aires; sequestrando, durante uma conferência em Rosário, o diretor do Centro de Artes Visuais do Di Tella, o renomado crítico Jorge Romero Brest.[30] O que, entretanto, acabou definindo a ação desses artistas, enquanto coletivo, foi o evento Tucumán Arde, um processo de contrainformação sobre as causas da crise de uma província no norte da Argentina. Participaram dos acontecimentos Eduardo Favario, León Ferrari, Juan Pablo Renzi, Roberto Jacoby, Graciela Carnevale, Maria Teresa Gramuglio, Nicolá Rosa[31] e outros. No manifesto distribuído em Rosário postulam a ação estética como “ação coletiva e violenta”, destruindo o “mito burguês da individualidade do artista e o caráter passivo da arte”. Eliminando a separação entre artistas, intelectuais e técnicos, organizam ações unitárias.
Eles escrevem:
A obra coletiva que se realiza se apoia na atual situação da Argentina, radicalizando-se em uma das províncias mais pobres, Tucumán, submetida a uma longa tradição de subdesenvolvimento e opressão econômica. Um “Operativo Tucumán” elaborado pelos economistas do governo tenta mascarar essa agressão à classe trabalhadora, com um falso desenvolvimento econômico baseado na criação de novas e hipotéticas indústrias financiadas pelo capital norte-americano.[32]
Entendendo que o Operativo Tucumán é, na verdade, um Operativo Silêncio, os artistas reagem com o Tucumán Arde, que, como escrevem, consiste na criação de um circuito “sobreinformacional” para denunciar a deformação que os fatos sofrem através dos meios de informação e comunicação dominados pela classe burguesa. O Artistas de Vanguarda viajam a Tucumán com uma ampla documentação sobre os problemas econômicos e sociais da província e, acompanhados de técnicos e especialistas, procedem ali a uma verificação da realidade social. O processo de ação culminou com uma conferência para a imprensa em Rosário e depois em Buenos Aires, quando tornaram pública, e de maneira violenta, a atuação das autoridades oficiais, assim como a cumplicidade dos meios culturais e de comunicação.
Embora diversas na maneira de agenciar as ações artísticas como acontecimentos públicos, são propostas que, lidas do ponto de vista da história, abrem para o pensamento e escrita sobre a arte do presente, e certamente do futuro, o debate que Miwon Kwon havia identificado se delineando naquelas décadas, ou seja, o debate sobre o lugar determinado discursivamente e que é constituído como campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural e, no caso específico desses acontecimentos, debate político.
Ao levarem a arte para fora do sistema museu/galeria, constituíram um conceito mais amplo de lugar, tradicionalmente referenciado na prática artística. Infiltrando-se na mídia, garantiram a discussão no espaço público, mas esses cinco eventos lançam ainda, próximo de uma “invenção do cotidiano”, descrito por Michel de Certeau, a utópica vontade de fazer da arte um lugar-comum, infiltrando-se e se infiltrando do saber ordinário, como escrevera Hélio Oiticica.[33] São táticas que mesmo diante de sistemas reguladores, assim como a linguagem diante de uma sintaxe prescrita, ou diante das instituições de arte, como galerias e museus, são capazes de realizar “as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolveram”.[34] São, em arte, acontecimentos no nível não transfigurado, que, segundo De Certeau, desvelam o quanto a “inteligência é indissociável dos combates e dos prazeres cotidianos que articula”.[35]
[1] Salomão, Waly. O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato marginalia neto. In Armarinho de miudezas. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993, p. 67.
[2] Oiticica, Hélio. Apocalipopótese. Manuscrito. Programa Hélio Oiticica. Projeto Hélio Oiticica, Itaú Cultural. www.itaucultural.org.br. Acessado em julho de 2010.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] No texto que Frederico Morais escreveu em 28 de julho de 1968 para o Diário de Notícias, patrocinador do evento Arte no Aterro, de que Apocalipopótese era parte, fica clara essa intenção de ampliação para um sentido público das capas Parangolés, constituindo as experiências sensoriais-ambientais. Não era, como bem havia entendido Hélio, uma proposta de tornar o espaço urbano mais artístico ou apresentar arte para o público da cidade, mas de dar à arte esse sentido. Morais, Frederico. Parangolé de Oiticica: da Capa ao Urbanismo. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de julho de 1968.
[6] Fraser, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. Concinnitas, n.13, ano 9, v. 2. Rio de Janeiro, dezembro de 2008.
[7] Brett, Guy. Experimento Whitechapel II. In Brasil Experimental. Arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.
[8] Oiticica, Hélio. A obra, seu caráter objetal, o comportamento. GAM, 18, 1969.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Oiticica, Apocalipopótese, op. cit.
[12] Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. (Seleção de textos de Luciano de Figueiredo, Ligia Pape e Waly Salomão). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 16.
[13] Idem.
[14] Apud Braga. http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/coletanea_ho/ho_pbraga. Consultado em 20/07/2010.
[15] Apud. Braga, op. cit.
[16] O livro, que é uma seleção de seus textos entre 1964 e 1969, reproduz uma anotação de Hélio de 15 de janeiro de 1961 em que escrevera: Aspiro ao grande labirinto. Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, op. cit. p.26.
[17] Artur Barrio. Rio de Janeiro, abril de 1970.
[18] Cildo Meireles. Rio de Janeiro, 1970.
[19] A manchete de O Globo de 13 de dezembro de 1968, que anunciava o Ato Institucional n. 5 estampava: 1) Congresso em recesso; 2) Confisco de bens; 3) Suspensos “habeas” políticos; 4) Restabelecidas as cassações; 5) Liquidada a vitaliciedade. O ano de 1968 tinha sido de muita tensão na cena artística carioca, assim como para a população como um todo. Com os acontecimentos do mês de março no restaurante do Calabouço, quando o estudante Edson Luís foi morto em uma manifestação reivindicatória, e as manifestações estudantis, que ganham enormes proporções e culminam com a Passeata dos cem mil em junho, o ano termina com o discurso de Márcio Moreira Alves no Congresso, deflagrador do Ato 5, que impõe o fim dos direitos civis e anunciava a época mais dura da repressão. Nesse período sombrio, quando a exposição da representação do Brasil na Bienal de Jovens de Paris (1968) é censurada e a X Bienal de São Paulo (1969) sofre boicote internacional, o Salão da Bússola (1969), que tinha entre os jurados Frederico Morais e Mário Schemberg, dá o primeiro prêmio a Cildo Meireles, com o trabalho Arte Física: caixas de Brasília/clareira (1969), desencadeando entre os críticos de arte uma polêmica singular contra as novas linguagens. Nessa mostra Antonio Manuel apresenta o ambiente Soy loco por ti América, e Artur Barrio, SITUAÇÃO.....ORHH....ou...5.000...T.E. Essa foi a sua primeira T E, Trouxa Ensanguentada, que, em sua segunda fase, como explica Barrio, após o término do Salão, teve seu conteúdo transportado para o lado de fora do Museu, sendo colocada em uma base de concreto do jardim destinada às esculturas consagradas.
[20] Em 1970, Frederico de Morais já havia proposto os Domingos de Criação no MAM do Rio de Janeiro. O vão livre do belo edifício projetado por Affonso Eduardo Reidy transforma-se em ágora, em que artistas, não artistas, anartistas e anarquistas, ou melhor, quem chegasse tinha acolhimento para exercer a liberdade e a criação em Domingo por um fio; O domingo do papel; O corpo a corpo no domingo. Segundo Frederico, esse foi o começo do processo de pensar o lado de fora do Museu. “Enquanto estive no MAM essa era minha máxima preocupação: o que é o lado de fora, como deve ser ativado e utilizado, como pode participar o público, a arte e a rua, a arte e a vida”. Morais, Frederico. Frederico Morais, o crítico-criador. In Portal de Literatura e Arte Cronópio. http://www.cronópios.com.br Acessado em 15/07/2010.
[21] Ribeiro, Marília Andrés. Neovanguardas. Belo Horizonte: C/Arte, 1997.
[22] Simões, Thereza. Depoimento de uma geração: 1969-1970. Ciclo de Exposições sobre Arte no Rio de Janeiro. Galeria de arte BANERJ. Rio de Janeiro, julho de 1986, catálogo.
[23] Cuyás, José Días e Pardo, Carmen. La carnavalización de la vanguardia. In Desacuerdos 1: Sobre arte, políticas y esfera pública en el Estado español. Barcelona/ MACBA; UNIA; Arteleku,
[24] Rejeitados pela velha esquerda, que estava na clandestinidade, os artistas de vanguarda identificavam-se com o movimento de contracultura, e foi em Pamplona que se distribuiu gratuitamente parte da primeira edição espanhola de Sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Cf. Encuentros de Pamplona 1972: Fin de fiesta del arte experimental. Madri: Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia.
[25] Oiticica, Apocalipopótese, op.cit.
[26] Segundo o catálogo, En Pamplona, las capas Parangolés, un modo de ativar el color en el espacio que su autor vincula con la tradición del carnaval y de la samba, sufrieron un desvio en su uso performativo que las llevó a convertirse, para buena parte de los asistentes, en festivas banderas reivindicativas. Encuentros de Pamplona 1972, op. cit, p. 246.
[27]Ainda como parte dos Encontros, programou-se o que hoje é considerado o primeiro ciclo de videoarte da Espanha. Antonio Muntadas mostrou o trabalho Sensorial way, registro de uma experiência corporal-sensorial que fizera em Nova York. Encuentros de Pamplona 1972.
[28] Pilar Parcerisas faz referência ainda ao evento Presentació d’experiències d’art concepte, de fevereiro de 1973, em Bañoles. Sua importância teria sido a de ter favorecido o início do debate sobre a arte conceitual com uma tomada de posição crítica e ideológica de caráter político, quando se questionou a prática artística, o objeto artístico e a comercialização da arte. Também se impulsionou a participação do espectador e se situou a arte no contexto da luta política e repressão cultural, que se vivia na Espanha. Cf. Parcerisas, Pilar. Conceptualismo(s) poéticos, políticos y periféricos. En torno al arte conceptual en España: 1964-1980. Madri: Edições Akal, 2007, p. 236.
[29] Mercader, Antoni. Entrevista com Antoni Mercader. In Conceitualismos do Sul/Sur. Freire, Cristina e Longoni, Ana (Orgs.). São Paulo: Annablume/USP-MAC/AECID, 2009.
[30] Cf. Longoni, Ana. “Vanguardia” y “revolución”, ideas-fuerza en el arte argentino de los 60/70. In Brumaria 8: Arte y Revolución. Madri: Brumaria. A.C. Primavera 2007.
[31] Esses são os artistas citados no catálogo Heterotopías. Medio Siglo Sin-lugar. 1918-1968. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía. 12/12/00-27/2/01, p. 539.
[32] Tucumán Arde. Manifesto. Apud Heterotopías, op. cit.
[33] Oiticica, A obra, seu caráter objetal, o comportamento, op. cit.
[34] De Certeau, Michel. A Invenção do cotidiano. N. 1. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 45.
[35] Idem.