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MEMÓRIA:  EXIGÊNCIA E RESISTÊNCIA 
Sheila Cabo Geraldo  

RESUMO: Ao apresentar o filme Nostalgia da luz, de 2010, o cineasta e documentarista chileno Patricio Guzmán nos leva ao exercício de memória, que é sempre mais do que um exercício de preservação de recordações. Lança-nos nesse necessário impulso de pensar sobre o tempo, fazendo-nos reconhecer o que vem a ser viver o “frágil presente”, mas também de que maneira a memória é parte do presente, ou seja, a memória é um exercício do presente que ativa o passado. 
 

PALAVRAS-CHAVE: Memória, Resistência, Ativismo.

"Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente,

os que não têm não vivem em nenhuma parte."

Patricio Guzmán 



      Ao apresentar o filme Nostalgia da luz, de 2010,1 o cineasta e documentarista chileno Patricio Guzmán nos leva ao exercício de memória, que é sempre mais do que um exercício de preservação de recordações. Lança-nos nesse necessário impulso de pensar sobre o tempo, fazendo-nos reconhecer o que vem a ser viver o “frágil presente”, mas também de que maneira a memória é parte do presente, ou seja, a memória é um exercício do presente que ativa o passado. O filme lança pontes que reatam no Deserto do Atacama a arqueologia − que busca ali identificar os traços deixados no chão e nas pedras há quase 3.000 anos por culturas précolombianas; as investigações dos astrônomos sobre a origem do universo e da vida; os rastros da região, que foi produtora de salitre no final do século XIX e início do XX − cujo regime de trabalho era o de semiescravidão; e o campo de concentração para presos políticos durante o período da ditadura de Augusto Pinochet, localizado nas ruínas de um dos acampamentos de trabalhadores das usinas de salitre.2  

 

     Logo após o golpe contra o governo de Salvador Allende, entre 1973 e 1975 a ditadura de Pinochet fez passar pelo Campo de Chacabuco3 cerca de 3.000 presos, centenas deles vindos do Estádio Nacional, em Santiago − onde o próprio Guzmán esteve preso −, mas também de comunidades do norte do Chile, assim como Valparaíso e Concepción. Composto por casebres de madeira, o campo de Chacabuco era cercado de arame farpado, com torres de vigilância e rodeado de minas. Muitos prisioneiros foram ali executados, e seus corpos sepultados no deserto. Segundo Guzmán, se em Atacama o homem olha para a céu a fim de descobrir o passado, há muito na própria terra a ser descoberto. Não só desenhos pré-colombianos, mas também os restos mortais dos desaparecidos políticos. Assim, o que o filme de Guzmán aponta, revelando fraturas do passado, é a necessidade de investigar essas fraturas para que, em exercício de memória, seja possível viver a vida frágil do presente.  

 

       Se, diante da busca da origem do cosmo e do homem empreendida pelos astrônomos de Atacama, Guzmán volta à história recente do Chile, à história da ditadura de Pinochet, sua pergunta fundamental não é, então, apenas o que somos no âmbito cósmico, mas também de que maneira a memória dos traumas é parte do que somos. Foi seu contato com o astrônomo Gaspar Galaz que o levou a afirmar que tudo que vemos é passado, mesmo que por uma infinitesimal partícula de tempo, ou seja, o que chega a nossos olhos é memória do passado. Fundamentais também foram os depoimentos do arqueólogo Lautaro Nuñez, cujo conhecimento e memória do deserto havia contribuído para que se pudessem encontrar ossadas de desaparecidos mortos pela ditadura, assim como as memórias do arquiteto Miguel Lawner, preso político que, ao se exilar na Dinamarca, refez os desenhos que havia feito e rasgado no campo, como forma de reter as condições do alojamento e da vida. Seus desenhos-memória foram fundamentais para a denúncia internacional dos horrores da ditadura de Pinochet. Há no filme, ainda, os relatos de Vitória Saavedra e Violeta Berrios, a partir dos quais Guzmán alcançou a busca incessante que essas mulheres fazem escavando o solo seco e árido do deserto na tentativa de encontrar destroços de seus parentes desaparecidos e mortos há quarenta anos, impedindo o apagamento, preservando a memória e narrando suas histórias, que são pessoais, mas também coletivas, de um povo e um país. Os depoimentos de Vitória e Violeta são os relatos dos que sobreviveram ao terror do campo de prisioneiros, sobreviveram a seus maridos e filhos, uma vez que esse campo era só para homens. Suas memórias são as memórias do trauma, de um “passado que não passa”, como escreveu Marcio Selligman-Silva4 sobre o testemunho do sobrevivente Primo Levi no livro É isto um homem, de 1947, em que Levi relata sua estada em um campo de concentração nazista. O testemunho, acrescenta Selligman-Silva, é uma modalidade de memória. Marcio pontua que, em seu tratado De memoria et reminiscentia, Aristóteles argumenta que, por ser um arquivo de imagens, a memória pertence à mesma parte da alma que a imaginação; é um conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um adicional temporal, sendo um conjunto de imagens do passado. Esse parece ser o caminho para aceder a Nostalgia da luz, em que Guzmán envolve a arqueologia, a astronomia e a história em uma forma de memória, imaginando em arte uma via para os conflitos entre esquecer e lembrar, que se abateram sobre o Chile ao findar a ditadura (1990). Em vez de uma forma de rememoração monumental − o que talvez se pudesse pensar a respeito do documentário Batalha de Chile I, II e III, que Guzmán realizou durante o período do governo socialista de Allende, até seu final trágico com o bombardeio do Palácio de la Moneda e a morte do presidente −, o que realiza em Nostalgia da luz é um dispositivo pouco delineado, incerto, mas potente para nossa história do presente.  Escrevendo sobre o repertório simbólico da história chilena recente, Nelly Richard, historiadora e crítica de arte,5 destaca que a figura da memória tem sido fortemente enfatizada entre os artistas chilenos, já que ainda permanece na história essa tensão não resolvida entre esquecimento e recordação, tensão que se apoia na latência e na morte, assim como em revelação e ocultamento. Como escreve Richard, a falta da sepultura é uma imagem do duelo histórico que não termina, pois não permite que se assimile o sentido da perda; mas também é metáfora de uma temporalidade não concluída, aberta às possibilidades de exploração pelo que chama de “uma memória ativa”.6 Este talvez seja o grande saldo da narrativa fílmica de Guzmán: evidenciar que o passado não é um tempo congelado na recordação, é um “campo atravessado por vontades oficiais de tradição e continuidade, mas ao mesmo tempo, por descontinuidades e cortes que frustram qualquer desejo unificante de tempo homogêneo”.7

 

      Considerando-se que a história chilena recente é marcada pela recordação violenta do golpe de 1973 – tendo sido o bombardeio da Casa de La Moneda  responsável pela morte de Salvador Allende −, mas também pelas recordações das lutas contra a ditadura, que levaram milhares de cidadãos à morte, a produção de arte no Chile, mais especificamente desde o golpe, segue desfazendo e refazendo os processos de evocação do passado.8 Esses processos, segundo Richard, seguiriam pari passu com o que a crítica chilena chamou de “reformulação” da produção em arte no Chile da segunda metade dos anos 1970,9 que, de acordo com o movimento internacional, passa a cruzar as fronteiras entre as artes visuais, a literatura, a poesia, o vídeo, o cinema e o texto crítico, utilizando não só matérias derivadas do desenvolvimento tecnológico, como também dinâmicas processuais e precárias de arte-acontecimento e arte-situação, como a performance e as intervenções urbanas, expandindo-se, assim, no sentido do conceitual(ismo) da/na arte.10

 

      Não podendo ser considerado um estilo nem um medium, mas uma estratégia de antidiscursos, o conceitualismo opera, como escreve Mari Carmen Ramirez, com “táticas evasivas”, que põem em causa tanto a “fetichização da arte, como os sistemas de produção da arte na recente sociedade capitalista”.11 Assim é que conceitualismo, depois da revolução artística verificada pelos movimentos históricos de vanguarda, pode ser considerado a segunda maior mudança no entendimento e na produção de arte do século XX, já que cancela o estatuto e o valor do objeto artístico autônomo, herdado do Renascimento, transferindo a prática artística da estética para o domínio flexível da linguística.12 Dessa maneira, possibilita formas de arte absolutamente novas, cuja ênfase não está nos processos artísticos, mas em processos estruturais, que ultrapassam as considerações da percepção e da forma.  Nelly Richard chamou de Escena de Avanzada (1975-1985) o conjunto de artistas atuantes nesse período pós-golpe não só pelo compartilhamento de linguagens, mas, sobretudo, pela ação de enfrentamento dos limites impostos pela sociedade repressiva, o que faziam apostando em uma crítica-experimental13 como força disruptiva de combate14 (Deleuze). Essa observação vai ao encontro da polêmica revisão histórica pós-colonial, que vem sendo travada sobre a arte conceitual na América Latina, especialmente aquela levada pela crítica e historiadora portoriquenha Mari Carmen Ramirez, citada anteriormente, que, discordando da historiografia dominante até muito recentemente, considerou o conceitualismo na América Latina não como uma assimilação ou um reflexo, ou até mesmo como réplica dos movimentos hegemônicos, especialmente da arte conceitual desenvolvida na Europa e nos Estados Unidos, mas, como escreve, tendo “emergido paralelamente” ao desenvolvimento das estratégias conceituais e, em alguns casos, as antecipando. Segundo Ramirez, a “palavra conceitualismo surgiu pela primeira vez em consequência de uma operação crítica retrospectiva, cujo objetivo era determinar a especificidade das práticas latino-americanas em relação ao discurso corrente da arte conceitual.”15 Entendido dessa maneira, o conceitualismo seria uma resposta local às contradições originadas pelo fracasso dos projetos de modernização, mas também dos modelos artísticos preconizados para a América Latina, o que lhe garante uma dicção autônoma. Entretanto, para compreendê-lo na América Latina, é preciso considerar o conceitualismo da maneira como foi constituído, dialeticamente, por meio de uma articulação complexa entre as necessidades locais, políticas, e as tendências centrais, ontológicas. Segundo Ramirez,

      "ao fazer da política e da ideologia o ponto de partida para o questionamento radical da arte enquanto instituição, os conceitualistas da América Latina produziram algumas das respostas mais criativas do século 20 ao problema da função da arte, levantado pela primeira vez por Marcel Duchamp."  

    Dentre os artistas que Richard nomeou como pertencendo à Escena de Avanzada,17 destaca-se o Grupo CADA, Coletivo de Ações de Arte, atuante entre o final dos anos 70 e início dos 80, de que participavam Lotty Rosenfeld, Juan Castillos, Fernando Balcells, Raul Zurita e Damiela Eltit, e que, tendo realizado as ações mais efetivamente militantes, atuavam nessa complexidade conceitualista. Traçavam estratégias com as quais pretendiam apagar os limites entre a arte e a vida, como fizeram na ação Para não morrer de fome na arte, executada em 3 de outubro de 1979. Distribuíram, como primeiro passo, sacos de leite em uma vila miserável na periferia de Santiago. Em seguida, recuperaram os sacos para utilizar em “obras” a ser expostas em espaços institucionais da arte. O terceiro passo foi conseguir uma página em branco na revista Hoy (Hoje) em que imprimiram o texto:

 

      "Imagine essa página completamente em branco. Imagine essa página completamente em branco como o leite consumido diariamente. Imagine cada lugarejo do Chile privado do leite diário como páginas em branco para ser preenchidas."18 
 
      Metaforicamente transgredindo as margens de regulamentação da arte, as ações em Santiago terminaram no dia 17 de outubro, quando oito caminhões de leite desfilaram pela cidade e estacionaram em frente ao Museu de Belas Artes, que havia sido bloqueado com cem metros quadrados de tela branca, como o branco do leite.  

 

      Também do grupo CADA foi a ação Ay Sudamerica, de 1981, que despejou 400.000 panfletos sobre bairros pobres de Santiago, fazendo uma citação do bombardeio do Palácio de la Moneda em 1973. No folheto vinha escrito “Todo homem que trabalha para a ampliação – ainda que apenas mental – de seus espaços de vida é um artista.” A última ação do CADA foi NO+ e se deu dez anos depois da tomada do governo por Pinochet. O grupo solicitou a ajuda de outros artistas para preencher a cidade de grafites NO+, o que acendeu na população o desejo de completar a frase, com diversas mensagens de protesto, como “ditadura”, “pobreza”, “medo”.  

 

      Muitas foram as ações que colocaram em foco os limites institucionais de espacialização da arte, fixando a cidade e a vida diária como “lugares de arte”, como foi o caso também do trabalho Uma milha de cruzes sobre o pavimento, de Lotty Rosenfeld, um potente trabalho desenvolvido individualmente em que a artista alterou com fita adesiva a linha divisória das ruas, criando um curto-circuito nos caminhos e nas direções a seguir. Em 2007, quando o refez na 12a Documenta de Kassel, ocasião em que equivocadamente o trabalho foi compreendido enquanto pura ação provocadora, que se cumpria exatamente quando era rasurado, sendo, assim, retirado pela limpeza pública, com a anuência da curadoria, logo após ter sido feito e antes mesmo da mostra ser aberta, Lotty, já de volta ao Chile e bastante decepcionada, declarou:  

 

      "Estou interessada em que as pessoas possam refletir sobre como obedecem às ordens onde o poder age subliminarmente para criar sujeitos obedientes, sem reflexão, porque isso é conveniente para todos os sistemas [...] O que eu tento com a repetição desse sinal, é que alguém que passa, veja uma linha que nunca tinha visto e que cruze a linha que antes respeitava."19

 

      O fato de ter suscitado tanto equívoco cerca de trinta anos depois de ter sido feito no Chile, por outro lado, só confirma seu caráter conceitual, de temporalidade-acontecimento, aberta, sempre em curso, como foi também o projeto Estudos sobre a Felicidade, que Alfredo Jaar desenvolveu entre 1979 e 1980. Composto de sete etapas em diferentes dispositivos − entrevistas, vídeos, performance, intervenções urbanas e registros fotográficos −, sua ação surge, como declara, de uma situação desesperada: Santiago do Chile em 1979. Assim, a pergunta sobre a felicidade, que se valia do tecido da vida diária, já que incluía procedimentos da mídia impressa e televisiva, expande-se e passa a ser, nesse momento e lugar, em plena ditadura militar, uma forma de atrair para o espaço experimental e livre da arte o espaço público, então atravessado pelo medo.

 

      Retomar agora o conceito de “memória ativa”20 parece importante para pensar as ações artísticas hoje, tendo-se passado quarenta e cinco anos da fratura histórica e artística que se instaurou na América Latina, mais precisamente no Chile, a que se dedicou o filme de Gusmán. Para isso, há que considerar esse período de quase meio século perpassado por importantes mudanças advindas sobretudo das transformações forjadas no avanço da ciência, da tecnologia, da comunicação e da informação, que se refletem nas mudanças no campo das relações políticas, econômicas e culturais, quando se constata o enfraquecimento da historicidade com o pensamento neoliberal, assim como o fim das grandes narrativas, que caracterizaram a modernidade e a ideologia universalista e globalizante de progresso permanente e melhoramento social (o bem-estar social), mas também quando se fortalecem os debates pós-colonialistas e as reações decoloniais.  

 
      Se as ações artísticas, que seguiram a crítica das grandes narrativas modernas, característica daquelas conceitualistas, foram desmontadas pelo fenômeno da mundialização, muitos artistas, segundo Hall Foster,21 acolheram o “retorno do real”, adotando práticas consideradas essenciais para abordar as condições contemporâneas, que, como escreveu Raffaela Baccolini a propósito das sociedades pós-utópicas em que vivemos, seriam ações artísticas em que se ordenam: “a distribuição do conhecimento, a recuperação da memória, o acesso à informação, a produção do pensamento crítico, a construção da esperança, a criação de resistência”.22

 

      Assim é que se pode compreender a necessidade de se falar a respeito de memória, ainda que no sentido fragmentado (Benjamin), como uma espécie de insistência, ou resistência, para que não se perca o sentido de estar e agir no mundo (memória ativa), mesmo que de maneira frágil e inconclusa. É sobretudo a maneira inconclusa que nos faz voltar ao Chile de 2010 e reencontrar o trabalho de Alfredo Jaar, que estava vivendo fora do país desde a década de 1980, após ter feito a pergunta sobre a possibilidade de ser feliz em um estado de exceção.  

 

      Alfredo Jaar foi convidado para realizar uma instalação permanente em Santiago do Chile, como parte do Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O museu foi construído com o objetivo dar visibilidade às violações dos direitos humanos cometidos no Chile no período entre 1973 e 1990, dignificar as vítimas e familiares e estimular a reflexão e o debate sobre a importância do respeito e da tolerância, para que tais atos não se repitam (História do Museu). Sua obra ficou concluída em 2010, quando foi inaugurado o museu, em 11 de janeiro. Trata-se de um arquivo histórico de fotos, cartas, áudios, filmes, documentos, provas e desenhos. No primeiro andar está o setor que faz uma apresentação da história chilena após o golpe, onde é possível ouvir o último discurso de Salvador Allende. Nesse andar também é possível ler as cartas que os presos enviaram a seus familiares e assistir ao vídeo do bombardeio do Palacio de la Moneda. No segundo andar fica o setor Verdade e Justiça, um destacado memorial com fotos dos desaparecidos, que ocupa um grande espaço do museu. Enquanto a arquitetura imponente do prédio pode ser vista como parte de um desejo de monumentalizar a narrativa histórica proposta pelos fundadores e curadores do museu, a instalação de Jaar oferece um caminho bastante distinto. O artista projetou especialmente o trabalho de site-specific A Geometria da Consciência, que fica no subterrâneo, a seis metros de profundidade, na Praça da Memória, em frente ao museu. Ali o visitante tem uma experiência diferente e complementar da que tem no museu-memorial. Não experimenta a história de dados, mas a história que se abre para vivência complexa de pensamentos e sentimentos, sempre uma história a ser construída, sem fim.  

 

      Quando os visitantes descem para o hall de entrada, como em uma catacumba, encontram um guia do museu que os leva à câmara interna, onde ficam submersos em silêncio e escuridão durante sessenta segundos. Lentamente, uma luz fraca começa a surgir da parede frontal, intensificando-se progressivamente. Seus raios brancos acabam por desenhar colunas de silhuetas de luz, que, pelo efeito de duas paredes laterais de espelhos, parecem intermináveis. Antes de entrar no espaço, o guia explica que esses perfis em silhueta foram tirados de duas fontes: uma coluna inclui as silhuetas de vítimas desaparecidas, assassinadas pelo aparato militar da ditadura, enquanto a coluna subsequente apresenta as silhuetas de cidadãos chilenos comuns e contemporâneos. A luz continua a se intensificar até atingir sua capacidade mais brilhante, quando a sala retoma a escuridão durante sessenta segundos, apagando as silhuetas. Assombrosamente, os perfis permanecem na retina interna da mente, produzindo uma imagem posterior. O visitante vive, assim, a evocação da presença e da ausência que, mesmo sendo “experienciada” individualmente, desencadeia um conjunto de associações e pensamentos que varia de acordo com cada um, mas que tem como foco a presença, o desaparecimento e a memória.  

 

      Como no trabalho Os olhos de Gutete Emerita, em A Geometria da Consciência Jaar interroga os limites da representação no contexto das experiências traumáticas.23 Ao evitar a reprodução de imagens explícitas do trauma, rejeita a cumplicidade da imagem e, contrariamente, confronta os visitantes com suas próprias reflexões mnemônicas, enquanto seres políticos. O espaço transforma-se em uma espécie de sala de cinema, em que o filme é um projeto individual e mutável de memória corporificada e afetiva. Segundo Jaar, seu memorial é único no Chile porque, ao contrário da maioria dos memoriais que comemoram apenas as vítimas oficiais da ditadura, é destinado a todos os cidadãos chilenos, uma vez que “o trauma (da ditadura) afetou a todos nós”. Esse é, como escreveu, um trabalho que foi projetado para cultivar tanto a consciência histórica quanto a ética das gerações passadas, presentes e futuras.  
 

 
 

GERALDO, Sheila Cabo. Memória: exigência e resistência, In Anais do 27º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27º, 2018, São Paulo. Anais do 27º Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.3732-3742. 
 

Notas e Referências:

 

1 Guzmán, Patricio. La Nostalgia de la Luz. Chile, 2010. 90 minutos. Direção, roteiro e narração: Patricio Guzmán. Fotografia: Katell Dijian. Montagem: Patricio Guzmán e Emmanuelle Joly. Som: Freddy González. Música: Miranda & Tobar. Produção: Renate Sachse, Meike Martens, Cristóbal Vicente.  

2 Huberstone foi talvez a mais conhecida dessas vilas de trabalhadores das usinas de salitre, tendo suas ruínas sido reconhecidas como Monumento Nacional em 1970. A vila passou ao status de Monumento da Humanidade em 2005. Cf. La Semana del Salitre. Cf. <http://www.memoriachilena.cl/archivos2/pdfs/MC0014662.pdf>. Acesso em 02/05/2018.

3 O campo de prisioneiros de Chacabuco ficava a 110km de Antofagasta, nas instalações abandonadas da antiga Indústria de Salitre de Chacabuco. Em 1968 a indústria foi vendida à Sociedade Química e Mineira do Chile e, em 1973, com o golpe de Estado, foi expropriada pelas Forças Armadas para converter-se em campo de prisioneiros da ditadura militar. Ali se recolheram, torturaram e fuzilaram prisioneiros políticos até 1975. Cf. <http://www.monumentos.cl/monumentos/monumentos-historicos/oficina-salitrera-chacabuco>. Acesso em 02/05/2018.

4 Selligman-Silva, Marcio. Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 2008.

5 Richard, Nelly. Fracturas de la memoria: arte y pensamiento critico. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2007a.  

6 A expressão “memória ativa” foi criada por Eva Giberti e aponta para uma memória que se coloca a servico da justiça para se servir do passado sob o domínio da vida. Apud Melendi, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017, p. 107.

7 Richard, op. cit., p. 110.

8 Richard, Nelly. Historia y memorias. In: Márgenes e instituciones. Santiago de Chile: Metales Pesados, 2007b, p. 125.

9 Reconhecemos a advertência de Soledad Donoso sobre a obra que alguns artistas vinham fazendo desde os anos 1960, cuja poética estava estreitamente ligada a uma cena experimental internacional, também chamada de conceitual, como a obra de Cecília Vicuña. Donoso, Soledad. Noções sobre o conceitual/noções sobre o experimental. Anos 1960/70, Chile anos1960/70 In: Freire, Cristina; Longoni, Ana (Orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume; USP-MAC, 2009.

10 Ramirez, Mari Carmen. Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 15, 2007, p. 185.

11 Idem.  

12 Idem.

13 Donoso, op.cit., p. 140.

14 Segundo Nelly Richard, esses artistas estariam empenhados na reformulação da relação entre arte e política opondo-se tanto ao determinismo do repertório ideológico de esquerda como ao idealismo estético, que desvincula a arte da responsabilidade social e crítica. Richard, 2007a, op. cit.

15 Ramirez, op. cit., p. 194.

16 Idem, p. 186.

17 Como explica Nelly Richard a partir de Benjamin, surgem nesse momento, na cena artística, práticas de “estouro” (estalido) no campo minado da linguagem e representação. Richard, 2007a, op. cit.

18 Camnitzer, Luis. Didáctica de la Liberación. Arte Conceptualista Latino Americano. Montevideo: CCE/CCEBA. 2008. P.116. (Tradução da autora)

19 Rosenfeld, Lotty. Lotty Rosenfeld: En la Documenta me sentí discriminada.  Facultad de Artes, Universidad de Chile. Junho de 2007. <http://www.artes.uchile.cl/noticias/41869/lotty-rosenfeld-en-la-documenta-me-sentidiscriminada#>. Acesso em 10/04/2018.

20 Giberti, Eva. Memória Ativa. Página 12, 1992.  <https://spot.net.ar/evagiberti/articulos>. Acesso em 05/06/2018.

21 Foster, Hall. O retorno do real: a vanguarda do final do século XX. São Paulo: Cosac Nayfy, 2014.

22 Baccolini, Rafaela. Apud Gadanho, Pedro. Utopia/distopia: breve história de uma dualidade incômoda. In Utopia/Distopia. Lisboa: Maat, 2017.

23 Ver Selligman-Silva, op. cit.   
 
 
 
CAMNITZER, Luis. Didáctica de la Liberación. Arte Conceptualista Latino Americano. Montevideo: CCE/CCEBA. 2008.  GADANHO, Pedro. Utopia/distopia: breve história de uma dualidade incômoda. In Utopia/Distopia. Lisboa: Maat, 2017. GIBERTI, Eva. Memoria Ativa. Página 12, 1992.  <https://spot.net.ar/evagiberti/articulos>. FOSTER, Hall. O retorno do real: a vanguarda do final do século XX. São Paulo: Cosac Nayfy, 2014. FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (Orgs.). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume; USP-MAC, 2009. 

GERALDO, Sheila Cabo. Memória: exigência e resistência, In Anais do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27o, 2018, São Paulo. Anais do 27o Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.3732-3742. 
MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017. RAMIREZ, Mari Carmen. Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 15, 2007

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ROSENFELD, Lotty. Lotty Rosenfeld: En la Documenta me sentí discriminada.  Facultad de Artes, Universidad de Chile. Junho de 2007.   <http://www.artes.uchile.cl/noticias/41869/lotty-rosenfeld-en-la-documenta-me-sentidiscriminada#>.  

SELLIGMAN-SILVA, Marcio. Narrar o trauma – A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 2008. 
 

 

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