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Arte, historicidade e memória.
Sheila Cabo Geraldo  

      Escrevendo sobre a historicidade das obras de arte e da possibilidade da escrita da história da arte, Walter Benjamin, que não foi um historiador da arte no stricto sensu, apostava em uma história que começasse a partir das obras, o que exigiu dele uma reformulação dos problemas e dos termos que constituem a própria noção de história e, consequentemente, de história da arte. Parece consenso, entretanto, que as exigências de Benjamin à história da arte denotem um impulso que remete às teorias dos criadores da história da arte moderna, como Wölfflin, Alois Riegl¹ e Aby Warburg. Para Didi-Huberman,² entretanto, a referência mais importante é a que remete à defesa de uma temporalidade anacrônica, que está na aproximação com as teorias históricas de Warburg, sobretudo com as que aparecem no Atlas Mnemosine. Tanto Benjamin quanto Warburg são defensores de uma história em movimento, interessada em afinidades entre imagens, assim como na busca não evolucionista de “tempos perdidos”.³A história da arte seria, então, para ambos, uma história das imagens, que Benjamin chama de imagens dialéticas e que se constituem na interpenetração “critica” do passado e do presente.⁴ A história da arte seria, assim, uma história que se abre como um campo de imagens dialéticas⁵ onde cada imagem, porque dialética, possui um adensamento de tempo, assim como uma rememoração no agora,⁶ como explica Benjamin no livro Passagens.⁷

      Assim, além de exigir o reconhecimento da imagem dialética, na sua intensidade temporal, a história exige também que a imagem seja um sintoma⁸, quando podem ser reconhecidos despojos acionando o movimento da história, uma vez que nos surpreendem ao vir do passado como imagens inconscientes de recordação.⁹Dessa maneira, como uma constelação de imagens fulgurantes, identificável no adensamento do tempo e na intensidade mnemônica das imagens, é que se pensa ser possível alcançar a historicidade de práticas artísticas contemporâneas, como a de Rosana Palazyan na videoinstalação Uma história que nunca esqueci, onde a força artística reside na ativação da memória em um tempo de despertar. No trabalho de Palazyan, a memória do genocídio armênio (1915) faz a matéria artística explodir em imagens-sintoma de terror e trauma.

      Rosana Palazyan é neta de armênios que chegaram ao Brasil na década de 1920, fugidos do massacre que seu povo viveu no território que hoje é a Turquia. Em Uma história que nunca esqueci, a imagem do despertar é um lencinho bordado pela avó durante o acolhimento na Grécia, onde sua família ficou refugiada até a viagem para o Brasil. O vídeo, que começa com a imagem de um barquinho de dobradura, feito com o pequeno lenço,10 desenvolve-se em sequência de imagens de violência e sofrimento, que a artista elabora com base em relatos e documentos de arquivo.11

 

      Ao longo de sua trajetória como artista, em várias ocasiões, Palazyan tratou da violência do cotidiano por ela presenciada na cidade do Rio de Janeiro, onde mora.12 Mas lembrar ou esquecer parece ser a dicotomia que enreda seus trabalhos.13 Isso posto, percebe-se que a violência e o trauma do holocausto armênio ressoa no Brasil não só nas obras diretamente relacionadas aos acontecimentos da primeira metade do século XX, como as de Rosana Palazyan, mas também como índice de permanência da violência escravista colonial, que se estendeu por séculos e que se passou a chamar de holocausto negro14 É no contexto da história aberta às imagens e aos discursos da memória que se pode identificar uma espécie de sublevação da herança colonialista genocida, sublevação muitas vezes ocorrida como pensamento intercultural, que analisa criticamente a matriz do poder colonial, persistente no capitalismo global como neocolonialismo,15 reafirmando o binômio dominador-dominado. Irrompem, assim, as vozes e as práticas artísticas femininas, negras, indígenas, queer, transgêneras, em imagens transdisciplinares, que abrem novas epistemologias para além das hierarquias epistêmicas universais.

 

      Considerando-se a necessidade do reconhecimento no Brasil da escravidão como um holocausto negro é que nos aproximamos da obra de Rosana Paulino, cujo discurso atravessa as discussões de gênero e etnicidade, trabalhando com imagens de mulheres negras, remetendo ao espaço doméstico, mas também às funções sociais e ao mundo do trabalho. Na série Bastidores (1997) discute a construção da subjetividade da mulher negra, destacando práticas de submissão ou subalternização.16 Como artista negra, descendente de escravizados, cruza o campo da memória individual e biográfica com imagens de memória coletiva, o que desenvolve, sobretudo, em Parede da memória (1994), uma parede de “proteção”, formada por “patuás”, que na cultura religiosa de matriz africana são amuletos. Parede da memória, em que cada patuá é confeccionado com uma imagem fotográfica de um membro de sua família, corresponde tanto ao testemunho de uma experiência pessoal de opressão e violência racista, que se precisa lembrar como uma didática, quanto ao jogo, como o do bloco mágico, que Freud estudou, no qual todo apagamento preserva uma imagem submersa, que no caso de Parede da memória funciona como uma suspensão em arte, prenhe de tensão e prestes a eclodir.

       A tensão do apagamento e da visibilidade é também o universo do trabalho Zumbi somos nós (2004-2007) do grupo Frente 3 de Fevereiro,17 que se define como “…grupo transdisciplinar de pesquisa e ação direta acerca do racismo na sociedade brasileira”18 e do qual participa Daniel Lima, artista paulista, que foi o curador da mostra, cujo título é a pergunta Agora somos todos negros?19

Zumbi somos nós é um projeto com vários desdobramentos, incluindo o documentário de 2007, que registra a intervenção em estádios de futebol, em que grandes faixas perguntam pela presença do negro na sociedade, saúdam os negros brasileiros e reafirmam a memória da resistência revolucionária, simbolizada pelo líder de quilombo Zumbi dos Palmares.

 

      Na exposição Agora somos todos negros? Daniel parte do artigo 14 da Constituição do Haiti, de 1805, que declarara todos os cidadãos haitianos negros. Apresenta em sua interrogação olhares sobre o racismo e o sexismo a partir do ponto de vista da negritude, que questiona a racialização como postura colonial. Tomando a frase da Constituição haitiana com um olhar crítico, Lima abre, ainda, o debate para as ambiguidades em que estão inseridos aqueles etnicamente identificados com os negros, de ascendência africana, como os povos quilombolas, mas também os indígenas, alvo da mesma violência genocida, já que as estatísticas sobre assassinatos de jovens e crianças, em sua maioria negras, correspondem à violência do argumento do “marco temporal” para a demarcação tanto das terras indígenas quanto das quilombolas.20

A exposição, que implica um estado de reflexão, abre, assim, oportunidade para a pergunta sobre os negros no sistema de arte no Brasil, mas também e sobretudo sobre a história da arte nessa nova e necessária epistemologia, cujo vir a ser recai em uma história descolonizada, em que haja o reconhecimento da imagem em sua intensidade temporal, assim como das latências e aproximações, acontecendo “vários tempos e várias histórias ao mesmo tempo”, como escreveu Achille Mbembe,21 e que acaba por afirmar uma descolonização na arte.

 

 

 

Notas e Referências:

 

 

1 Cf. GERALDO, Sheila Cabo. Riegl e Benjamin: arte, história e teoria moderna. Arte&Ensaios, Rio de Janeiro, 9, 2002. Disponível em http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/Riegl-e-Benjamin-arte-hist%C3%B3ria-e-teoria-moderna-Sheila-Cabo-Geraldo.pdf Acessado em 20 ago. 2017.

2 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006, p.124.

3 Como Warburg havia estudado no Atlas Mnemosine, para Benjamin importa a sobrevivência de afinidades mágicas e do gesto mínimo. DIDI-HUBERMAN op. cit., p. 127.

4 BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, op. cit., p. 505 [N2a, 3].

5 “Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não arcaicas.” BENJAMIN, 2006, op. cit., p. 505 [N 3, 1].

6 COSTA, Luciano Bernardino da. Imagem dialética/imagem crítica: um percurso de Walter Benjamin a George Didi-Huberman. V Encontro de História da Arte − IFCH/Unicamp, Anais, 2009.

7 Cf. DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 150.

A história que a imagem dialética faz eclodir implica o reconhecimento de uma pré-história, como uma arqueologia não só material, mas também psíquica, abrindo a história para os sintomas da vida psíquica e da memória. Cf. CANTINHO, Maria João. O voo suspenso do tempo: estudo sobre o conceito de imagem dialética na obra de Walter Benjamin. Espéculo. Revista de estudios literarios. Madrid, UCM, 2008. Disponível em http://www.ucm.es/info/especulo/numero39/imadiale.html Acessado em 30 ago. 2016.

9 Cf. DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 145.

10 O vídeo é parte do trabalho comissionado e apresentado na Bienal de Tessalônica, na Grécia, em 2013 e foi reapresentado na Bienal de Veneza em 2015.

11 O genocídio armênio (c. 1915-1920), que durante décadas permaneceu esquecido pela história, foi também chamado de holocausto armênio, cuja principal camada das recordações é sempre aquela que remete à brutalidade dos massacres e das marchas forçadas para a deportação, o que levou à morte mais de um milhão de armênios que viviam no Império Otomano. A intenção era exterminar sua presença cultural durante o governo dos chamados Jovens Turcos, que foi de 1915 a 1917.

12 A violência está em Hóstias (2000), que reúne cerca de 3.000 retratos de crianças mortas de forma violenta impressos em hóstias, assim como está em ...uma história que você nunca mais esqueceu? (2000-2002), sobre a violência contra internos em instituições de recuperação para crianças e adolescentes em conflitos com a lei. Em 2010 realiza a instalação O jardim das daninhas, um jardim-alegoria da exclusão dos não úteis, dos alienados, dos desempregados, dos que estão fora da norma social marcada pela finalidade, que foi mostrada junto com O realejo, trabalho no qual afloram os anseios dos moradores de rua. Cf. http://rosanapalazyan.blogspot.com/ Acessado em 20/06/2017.

13 Como ressalta Seligmann-Silva, a própria historiografia se abriu para a influência dos discursos da memória, sobretudo na história oral e na história das imagens. Se a historiografia positivista desconfiava da história das imagens, assim como desprezava a imaginação, ampliam-se a partir da segunda metade do século XX os estudos que buscam ler as imagens-marca, imagens-lampejo, como Benjamin havia feito no início do século. Dessa maneira, passa-se a aproximar um passado local ou nacional de outros passados, gerando novos tipos de constelações mnemônicas, novas possibilidades de história da arte

SELIGMANN-SILVA Marcio. Narrar o trauma. A questão do testemunho de catástrofes. Psicologia Clínica. Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, 2008.

14 ARAÚJO, Ana Lúcia. Shadows of the slave past: memory, slavery and history. New York and London: Routledge, 2014. Apud Vassallo, Simone Pondé. Entre vidas objetivadas y victimas de la esclavización: la trayectoria de los huesos del Cementerio Pretos Novos, en Rio de Janeiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 25, jan.-apr. 2017. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2017.25.14.a. Acessado em 02 de set de 2017.  

15 MIGNOLO, Walter. Pensamiento fronterizo y representación: conversación con María Iñigo Clavo y Rafael Sanchez-Mateo Paniagua. In. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antologia 1990-2004). Barcelona: Cidob y Uacj, 2015.

16 MIGNOLO op. cit.

17 O grupo publica seu manifesto: “nós da Frente Três de Fevereiro, queremos romper com este silêncio velado, convocando a sociedade a se posicionar diante da urgência latente desta realidade denunciando o esquecimento que a justiça, o poder público e a grande mídia tentam imprimir à questão do racismo frente à cidadania.” Disponível em http://www.frente3defevereiro.com.br Acessado em 23 abr. 2016.

18 Disponível em http://www.frente3defevereiro.com.br Acessado em 23 abr. 2016.

19 A exposição ocorre no Galpão Videobrasil, em São Paulo, onde estão trabalhos de Ana Lira, Ayrson Heráclito, Daniel Lima, Dalton Paula, Eustáquio Neves, Frente 3 de Fevereiro, Jaime Lauriano, Jota Mombaça, Luiz de Abreu, Moisés Patrício, Musa Michelle Matiuzzi, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Sidney Amaral e Zózimo Bulbul. Disponível em

http://site.videobrasil.org.br/exposicoes/galpaovb/agorasomostodxsnegrxs/apresentacao. Acessado e 31 ago. 2017.

20 O “marco temporal da ocupação” é um argumento que surgiu em 2009, ao lado das 19 "condicionantes" do STF no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/marco-temporal-um-argumento-racista-para-legitimar-massacres Acessado em 1 set. 2017.

21 AVILA, David. In. Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: Geledés − Instituto da Mulher Negra. Disponível em https://www.geledes.org.br/critica-da-razao-negra-achille-mbembe/?gclid=CjwKCAjwoNrMBRB4EiwA_ODYv7Sz7al0z6xRjGhHBBwNUjsqMvSrQJg--TyCgqeU2C45MmzITZ9e_hoCyekQAvD_BwE. Acessado em 7 set. 2017.

22 O “marco temporal da ocupação” é um argumento que surgiu em 2009, ao lado das 19 "condicionantes" do STF no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/marco-temporal-um-argumento-racista-para-legitimar-massacres Acessado em 1 set. 2017.

23 AVILA, David. In. Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: Geledés − Instituto da Mulher Negra. Disponível em https://www.geledes.org.br/critica-da-razao-negra-achille-mbembe/?gclid=CjwKCAjwoNrMBRB4EiwA_ODYv7Sz7al0z6xRjGhHBBwNUjsqMvSrQJg--TyCgqeU2C45MmzITZ9e_hoCyekQAvD_BwE. Acessado em 7 set. 2017.

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